domingo, 23 de outubro de 2016

CAFÉ COM LETRAS - (CON)TEXTOS E COMPANHIAS


Herberto Helder, 1930 - 2015, Portugal. Fonte da imagem: internet.

"O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia."

Herberto Helder



Torquato Neto, 1944 - 1972, PI / Brasil. Fonte da imagem: internet.

 LET´S PLAY THAT
(Torquato Neto, PI / Brasil)

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let´s play that



Paulo Passos, Portugal.

"(...) Era a portugalite, era a infecção do país, travestida de lantejoulas abandonadas pelo brilho.
O queixume justificava a existência quando esta não existe! Era o queixume no seu formato de alimento. De tóxico alimento! Era o leite materno fora de prazo. Era a paralisação chorosa e sentida da fome, satisfeita por lágrimas. Era o sorriso da pequenez. Era o elogio da permissiva dor nacional (...)."

Excerto de : "Psicologia e Putrefacção Social"
Paulo Passos
(Portal dos Psicólogos
http://www.psicologia.pt/artigos/ver_opiniao.php?psicologia-e-putrefaccao-social&codigo=AOP0399&area= )




Fonte da imagem: internet.




Gilberto Freyre, 1900 - 1987, PE / Brasil. Fonte da imagem: internet.

"(...) Os moleques só não. Já sabemos que também no colégio ele foi por vezes tão insultado por meninos da sua classe, com os gritos de Sinhazinha, que a sua firmeza de ânimo não resistiu a tais grosserias, e chorou; revoltou-se até contra a mãe. No íntimo talvez tenha querido deixar de parecer filho de Dona Sinhá.
Mas era impossível. Filho de Dona Sinhá ele se tornara para a vida toda. Filho meio filha. Terno como de ordinário só as filhas são - ou se mostram - com as mães (...)."

Excerto de: "Dona Sinhá e o Filho Padre"
Gilberto Freyre

Desvendando sobre: "...terno como de ordinário só as filhas são - ou se mostram - com as mães..." Porque será??? Digo, pensando ... na muche ...!!! 



Al Berto, 1948 - 1997, Portugal. Fonte da imagem: internet.

TRUQUE DO MEU AMIGO DA RUA
(Al Berto, Portugal)

ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina
olhar vazio varrendo a multidão, parei
sorri e tu vieste, fomos andando
os ombros tocavam-se, em direcção a casa
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo


sujo da cidade e de engates
sujo pelos dias e noites e mais dias que não tive
esperei-te deitado, outro cigarro e ainda espero
gosto dos corpos que riem, frescos
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo
húmido da boca, que sempre percorre e descobre

tacteio-te de alto a baixo
reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas,


blusão cheio de autocolantes,
peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda
e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, no sossegado sono.



João Ubaldo Ribeiro, BA / Brasil. Fonte da imagem: internet.

"(...) No arraial junto à fazenda da ilha, segundo até meu avô contava, havia uma imagem de São Gonçalo com um falo de madeira descomunal, maior que o próprio corpo dele.
O corpo era de barro, mas o falo era de madeira de lei e fixado pela base num eixo, de maneira que, quando se puxava uma cordinha por trás, ele subia e ficava ali em riste. Eu nunca vi, mas as negras velhas da fazenda garantiam que antigamente, todo ano, faziam uma procissão com essa imagem de São Gonçalo e as mulheres disputavam quem ia repintar o falo, era sucesso garantido no mundo das artes, para não falar que a felizarda ficaria muito bem assistida nos seguintes 364 dias (...)"

Excerto de: "A Casa dos Budas Ditosos"
João Ubaldo Ribeiro




Frederico Lourenço, Portugal. Fonte da imagem: internet.

A DIRECTORA DE MUSEU

(Frederico Lourenço, Portugal)


"A directora de museu é uma mulher muito menos culta do que parece, que passa a maior parte do tempo no cabeleireiro. Tirou História de Arte e anda sempre chiquíssima, mas, à semelhança da professora de francês que nunca ouviu falar de Stendhal, fica perplexa quando lhe falam de Pillement.
Escreve, como todos os museólogos em Portugal, em estilo pobre e pedestre e gosta de se referir às salas do museu como "espaço cénico, sei lá". No discurso oral, surpreende que a palavra "arte" surja sempre na sequência das palavras "moda" e "decoração". Aliás, qualquer pessoa percebe, falando com ela cinco minutos, que devia ter ido para decoradora. Mas não sejamos injustos, nem lhe neguemos a Arte por completo. O penteado, globoso e orbicular, é um triunfo artístico digno de ... Pillement."
Em: "Caracteres"
Frederico Lourenço

  

   
Janiel Martins, RN / Brasil



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