Em 02 ou 03 de Junho de _________!
Hoje, como em qualquer dia 2 ou 3 de Junho, ou como qualquer 31 de Maio, ou noutro qualquer dia, existem crianças.
Sabe o que é? Não é um conceito …!
Ontem ou anteontem foi um dia de “festa”, em que V.ª Ex.cia andou bastante atarefado a dar beijinhos nas criancinhas das escolinhas e escolonas, a fazer festas (repelentes, está de se ver!) nas cabecitas da canalha (que detesta!) alheias à sua presença, que se viam numa correria estranha ao dia-a-dia.
Pior (…!) ter vivido as repugnantes e antecipadas ideias que lhe surgiam à memória em 31 de Maio, sempre com a (terrífica) visão do dia 1 de Junho se impunha aos seus olhos.
Entende-se todo esse sacrifício … acordar cedo para ir visitar uma escolinha … que nunca pensou existir …!
Dureza, indubitavelmente …! Dureza …!
Suportar essas antecipações de ansiedade e, sabe-se lá … de angústia, até …!
Muito desgaste, muito trabalho, muita dedicação e, sobretudo, responsabilidade.
É o dever do sentido de Estado que, naturalmente, em si habita …!
Contudo … sem esquecer …!... Hoje, como em qualquer dia 2 de Junho, ou como em qualquer dia 31 de Maio, existem crianças …!
Mas, Ex.mo Senhor Poder Institucional e Político … relatando o arraial … a desejada e ambicionada festa “das criancinhas” …!
Pois … ontem (1 de Junho de qualquer ano) foi um dia chato, sem rosto responsável, só máscara …!
Ter, V.ª Ex.cia, que gramar:
- Muita cantilena;
- Muito esmurrar em pandeiretas, tambores e flautas de feira;
- Muitas danças, tão lindas e bem coreografadas, ao sorriso da professora ensaiadora (a com mais jeito para as artes), lá estavam os pequenos nuns desbotados e desfeitos figurinos de papel, por terem ficado esquecidos, durante uns tempos, no parapeito de uma janela que dá para o recreio da escola, sujeitos à intensidade do sol;
- Muito teatrinho;
- Muito teatrinho de fantoches (estes, por ventura, os mais ajustados);
- Muita criancinha naturalmente ranhosa, do choro, ou porque caiu, ou porque andou à porrada com outro, ou porque levou uma dentada … ou porque queria ir para casa … ou qualquer outra coisa, menos aquilo;
- Muita bolacha maria, muito rebuçado e amêndoa, muito bolinho de coco e refresco de pacote (misturado em água e açúcar), sempre com excesso de pó para dar mais cor, espalhados pela mesa do refeitório da escola, em jarros de plástico de várias cores;
- Muita fatia de bolinho feito de véspera, bem cobertos com os mais lindos e alvos panos (bordados à mão pelas funcionárias e com ajuda das professoras), sendo os ingredientes os que os pais e mães das criancinhas puderam dispensar;
- Muito (inapetecível) beijinho;
- Muita professora sorridente, orgulhosa e bem trajada, após uma inevitável ida à cabeleireira,
- Muitos (inválidos) sorrisos;
- Muito ar surpreendido (saturado e, até, envergonhado) pelas competentes façanhas das criancinhas, exaustivamente relatadas pelas professoras (sempre coladas), na exibição das suas próprias qualificações;
- Muita fotografia tirada e, posteriormente multiplicada pelo número de alunos, mais uma para cada professora, outra para cada auxiliar e ainda mais uma para constar (e mostrar ao futuro!) no álbum de recordações da escola;
- Muito sorriso disfarçador, sequencial a um invasor e inesperado suspiro da interioridade intestinal, de qualquer criancinha mais descontraída mas … aliviada … ou de qualquer adulto apertado, sorrindo, tolerantemente e difundindo responsabilidades, para uma qualquer inocente criancinha …
Enfim … e muitas outras delicias que o momento proporcionou …!...
… E a vontade de virar costas a tudo a aumentar … verdade! … Não é, Sr. poder institucional e político?
Entretanto …
Entretanto … vai que chega a hora discursiva … a comitiva popular (mascarada de importante e invejável poder, com a devida demarcação de distâncias … está de se ver …!) … com muita presunção engravatada e com colares aos peitos (sem deixar sumir o corrosivo sorriso, não fosse alguma professora disparar uma fotografia, para colocar, mais tarde, numa qualquer rede social), se vê defronte de uma plateia de criancinha, com o quadro como pano de fundo, onde …
- Uma criancinha esgravatava o cérebro com um dedo, entrado por uma narina, revirando a cabeça, a boca e os olhos para se ajeitar no alvo;
- Outra, coitadinha, bem que se coçava mas o piolho não dava tréguas;
- Outra, com ranho até às orelhas, por se assoar com as costas da mão, arrastando-a pelo percurso do rosto;
- Outra comia as sobras das bolachas que tinha conseguido roubar e guardado nos bolsos;
- Outra chorava porque tinha bebido refresco em excesso e a barriga inchava na reclamação ao corante;
- Outra chorava, também, porque lhe tinham roubado as pegajosas amêndoas, sempre apertadas numa das mãos;
- Outra chorava porque via e ouvia os outros a chorar;
- Outra chora por desespero e impaciência;
- Outra, ainda, também chorava, sem saber porquê … já toda desgadelhada, com o elástico que prendia o cabelo, ao início do dia, meio escambado e já sem a borboleta de feltro e plástico amarelo que o decorava;
- Outra criancinha, toda suada do futebol e da entusiasmante gritaria, por mais que a professora insistisse, teimava em não largar a bola, cega para que aquilo acabasse para poder voltar aos “relvados”, mesmo com o joelho esquerdo esfolado;
- As professoras e as auxiliares não paravam de dar atenção aos pequenos, numa constante confirmação de dedicação sem, contudo, deixarem de manter o olho nas perfeições dos debutantes oradores, garantindo que estavam a ser vistas e a ver;
… Tudo isto sempre ao som da banda sonora e aromatizada, que a garotada ia, intestinalmente compondo, devido aos abusos ingeridos e, eventualmente com a ajuda da professora, auxiliar ou elemento da comitiva, em aproveitamento da deixa dos pequenos, para se abrirem também …!
… Enfim, estava tudo nos conformes e como manda a lei da repetição … sempre a mesma coisa, nada muda e ninguém aprende …!
Terminado o discurso … sempre louvável para os presentes … vai que os sorrisos, já muito pálidos, começam a não ter disfarce.
Instalada a confusão das rapidíssimas despedidas …
Toca a andar que se faz tarde … tudo a desatar para os carros, com o motorista sempre a levar seca, entretendo-se a polir o carro, porque alguma mosca atrevida e mais arisca ali se esborrachou, sem se ter conseguido desviar a tempo, devido à velocidade da viatura da comitiva (dá um ar de labor chique e importante … a velocidade!).
O desespero da comitiva agravou-se, quando viram uma professora, atarefadíssima a rebanhar os pequenos, para a cantiga de despedida, ensaiada com tanto empenho, durante semanas a fio, para esta ocasião.
Neste momento, sem controlo viável …!!!... o defeito do feitio tatuou-se na expressão … com notória e visível alteração do disfarce.
Mas, na cantoria final, o sucesso não foi completo, pois muitas vozes já se esmurravam contra o cansaço, a saturação e a grande necessidade escarrapachada em toda a cachopada: mais refresco de morango (o preferido pela vivacidade da cor … diz-se!) e mais brincadeira … com bola, barulho e bolachas!
E as professoras sem descolarem, sempre com mais uma conversita de novidade ou, ainda a tempo de, entre sorrisos, cravar uma resma de papel para os trabalhos das criancinhas ou, pior, fazerem salientar a própria existência e dedicação com a disponibilidade e competência, para exercer o cargo (tão concorrido) de secretária de Estado da Educação ou similar (se for da Agricultura … também não está mal … afinal tudo se conjuga …!), desde que tivesse a cor da saliência.
Com os restantes e possíveis esforços, a comitiva, já com um pé dentro do carro, ainda conseguiu esboçar um meio sorriso que terminou num enorme bufar, já com o carro perto dos 100 … enquanto os pequenos ainda gritavam os últimos versos da letra de uma imperceptível cantiga, enquanto a professora maestrina, num sorriso de revista, esmurrava uma pandeireta com uma batuta.
Os pais e avós começavam a chegar, no cumprimento do protocolo definido e bem ensaiado na última reunião de pais … para levarem os respectivos pequenos.
Tudo correu como esperado e … diga-se, de tão perfeito que foi … vai reportagem para o jornal escolar.
Uma cópia do jornal, prenhe de orgulho, fica dependurada num quadro de esferovite na sala dos professores, que também faz de salão de chá, enfiada dentro de uma mica de plástico transparente e presa com pioneses (um de cada cor … cumprindo o postulado do calhas …! Calhou um azul porque a professora que o pegou, estava virada para outra, entusiasticamente a debitar, pela enésima vez, o sucesso da festa, logo seguido de um pionés ferrugento, para fixar a outra extremidade da mica … e assim por diante …!).
Vai ainda (mas já uns dias depois), mais uma carrada de fotocópias do jornal escolar, ao preço da conveniência achada pela professora presidente da comissão organizadora da “festa”, a serem vendidas por cada criança, aos próprios pais, em documento autenticado pelo Conselho de Festas e entregue um exemplar da pedinchice a cada pequeno, para fazer o resto da tarefa … em casa.
Mas …
Pois é, Ex.mo Senhor Poder Institucional e Político …
A criançada não acabou no dia 1 de junho (nem as professoras) …
Ontem, hoje e amanhãs são também dias mundiais da criança …! Ou não?
A festa terminou … mas hoje também existem crianças e, pior, apesar da festa, as crianças com privações não acabaram … continuam … dolorosamente … mas continuam e são aos milhões … vivendo (ou não) muito abaixo do básico que V.ª Ex.cia conhece, como um bom desconhecedor …!
Ex.mo Senhor Poder Institucional e Político …
Hoje, dias seguintes aos da “festa”…
- Há crianças com o VENTRE nas costas;
- Há crianças resignadas. Sim RESIGNADAS … Imagina a resignação numa criança? Consegue?
- Há crianças armadas com o ÓDIO e com o NADA;
- Há crianças feitas de MEDO;
- Há crianças manchadas de DOR e de VERGONHA;
- Há crianças que estão ao CONTRÁRIO;
- Há crianças que nunca sentiram LUZ ou ESPERANÇA;
- Há crianças que tentam mas NUNCA conseguem;
- Há crianças que já nem sentem a CARGA;
- Há crianças que já nem SENTEM …
Mas, V.ª Ex.cia, Sr Poder Institucional e Político, já teve a sua dose de sacrifício … ontem foi um dia cheio e muito trabalhoso, para além de lucrativo na resolução de problemas da CRIANÇA.
Entende-se … que mereça, de justo direito, um descansito de pelo menos duas semanas de férias (no estrangeiro), depois do árduo dia de labor de ontem, nas comemorações do DIA MUNDIAL DA CRIANÇA … certamente que pago do seu próprio orçamento … fica-se com a garantia!
Pois é … nada vê, nada ouve e nada sabe … como convém …!
… Como convém, a alguns …! … Mas há quem denuncie as mortes antecipadas dos outros …!
Verdade … não podia falhar …! Ainda houveram as ridículas, inoportunas e manipuladas patetices televisivas (e de outros meios, ditos, de comunicação social), onde as gracinhas do entulho “famoso” se deliciava, uns com os outros, a debitar historinhas da própria infância (iguais à enormíssima banalidade, diga-se!).
Ah, sim … Sem crítica alguma e numa completa ausência de noção de ridículo … como sempre …!
Foi um fabuloso enredo, espelhando o protótipo manifesto do exercício narcísico, que apenas traduz o camadão de egocentrismo da doença do carácter e da brutalidade da inutilidade e da incompetência … que naquelas caveiras estão, cronicamente tatuados.
… É …!
… Enfim …!
Fique bem e usufrua das merecidas semanas de férias, Sr. Poder Institucional e Político, que nós por cá vamos ficando com as criancinhas e com as agruras que não desgrudam …!
Certo da sua manutenção à aderente doutrina paralisante e impeditiva do despertar crítico, na sua conceptualização da castradora ordem social das coisas, subscreve envergonhadamente por te conhecer … em POVO …!
Planet Earth, 02 ou 03 de Junho de _______!"
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Edição e quadro: Janiel Martins |