Ancorados a arcaicos determinismos sociais, estamos impedidos de consciencializar e tornar o acto de vontade e de optar, em manifestos livres.
A deterioração e a cristalização da decadência e da dependência, na sua fiel submissão ao carneirismo, coadunam-se na consolidação do podre,
da involução e da paralisia da criatividade.
É o império do rebanhismo ...!!!
A inconsciencialização das regras e valores que estão na subjacência e influência das matrizes de pensamento, são de tal forma ferradas que obstaculizam a decisão tanto do pensar como do agir, condicionando-os aos meandros e balizamento do que
não se desregra em determinado grupo referencial e integrativo.
No Portal dos Psicólogos (www.psicologia.pt), no link abaixo debitado, está um texto em formato de narrativa romanceada, estando plasmadas, contudo e indubitavelmente,
as justificativas do título desta matéria.
"Psicologia e Putrefacção Social" - título de mais um artigo digno de louvo e de obrigatoriedade de dever, do psicólogo Paulo Passos, já várias vezes citado neste blog.
http://www.psicologia.pt/artigos/ver_opiniao.php?psicologia-e-putrefaccao-social&codigo=AOP0399&area=
" PSICOLOGIA E PUTREFACÇÃO
SOCIAL
Paulo Passos
O
quotidiano de Olívia e Toninho não trouxe novidades de maior a nenhum, após o
casamento.
Toninho
continuava a achar piada às reactivas de Olívia e às suas formas de apreciar.
Continuava a rir da mulher e a rir com ela.
Olívia,
não sentia necessidade de ter que sentir alguma coisa mais, só pelo facto de
estar casada, pelo menos em casa.
Nisso
ela era bastante prática, sabia escolher os ambientes para se exigir.
Viviam
na casa de Olívia, oferecida como prenda de casamento, pelo pai, por sugestão
da mãe Rosalina.
Para
Toninho não tinha significado de maior. Tinham que morar nalgum sítio, pagando
eles ou não.
Ficou
resolvido.
Ficou
resolvido mas com o cumprimento do acordado entre os agora, marido e mulher.
Nada e muito menos a casa, seria escolhido ou tinha interferência de Rosalina.
Rosalina
só podia oferecer coisas que fossem quebráveis! Riam.
Não se
imaginava a viver num cenário de teatro de revista.
Tinha
muitas mais certezas sobre o que não queria e não gostava do que o contrário.
Toninho
era intransigente em poucas coisas. Era, literalmente intransigente, com a
falta de senso.
Interrogava-se
sempre, até com alguma agressividade, quando percebia que, sendo o senso-comum
o esquema mais elementar do funcionamento humano, como era possível este
falhar? Só se se deixasse de ser gente?
A falta
de senso estava muito enraizada e impedia a autocrítica.
Impedindo
a autocrítica impede-se a evolução.
Estagna-se.
Impedindo
a evolução mantem-se o primarismo.
Estagna-se.
Toninho,
nestes pensamentos chegava a ver meia dúzia de hominídeos de gravata e saltos
altos, num quotidiano de satisfação e sem a menor qualificação e competência
avaliativa.
Era
visceral o asco que sentia, relativamente a certos manifestos, designados por
culturais. Cultura não é nada disto! Reforçava-se.
Sentia
vergonha acima das suas capacidades de controlo, quando se dava de frente com a
televisão emitindo um desses programas que ele tanto temia.
A
revista à portuguesa encimava a lista, logo seguida pelas touradas, bem como
por tudo o que envolvesse animais ao serviço de patetices.
Sempre
tinha lidado com animais, cresceu no meio deles e cresceu apreciando os
constantes flagrantes de nobreza que deles advinham, sobretudo em tudo o que
concerne à ternura. Apaixonava-os e entendia-os.
Não era
um homem com orgulho patriota.
Pouco
lhe dizia a selecção nacional de futebol ou outras. Os símbolos nacionais
também não mexiam com ele. O orgulho nacional era um limite que lhe tendia para
zero, nos bons dias!
O fado
(ou enfado! Como por ele referido, quando se intentava na convicção) era mais
uma desgraça que fazia congelar Toninho, só de imaginar que se podia cruzar com
essa brejeira e pobre lamúria guitarrada em qualquer esquina. Na sua versão de
gingão, o fado era um atropelo para Toninho. Dizia ele: “essa coisa, designada
por fado gingão, arrasta em si um jogo de cintura e um tremer de cabeça, que se
exibe apenas com plateia, seja real ou imaginada, nunca sendo um manifesto
genuíno, mas tão só um ordinário manifesto camuflador das incertezas viris. A
mulher masculiniza-se, quando o canta, tentando, infrutiferamente, substituir o
amargo cinzento por um leque de cores que nunca por cá existiu”!
Era a
rendição perante o pessimismo e o fatalismo dos perdedores.
Era a
portugalite, era a infecção do país, travestida de lantejoulas abandonadas pelo
brilho.
O
queixume justificava a existência quando esta não existe! Era o queixume no seu
formato de alimento. De tóxico alimento! Era o leite materno fora de prazo. Era
a paralisação chorosa e sentida da fome, satisfeita por lágrimas. Era o sorriso
da pequenez. Era o elogio da permissiva dor nacional.
Toninho
criticava vivamente a falta de pensamento avaliativo, o parasitismo e a
desqualificação.
A
rapaziada das televisões; os formatos de linguagens; os sotaques; as novelas;
os espectáculos; os actores e actrizes de curso intensivo (ou de nenhum, a
adicionar ao vazio das aptidões e vocações para esse fim); os jurados e juradas
de concursos; as pequenas e os pequenos (independentemente da idade e do
aspecto) a repetirem exaustivamente números de telefone em mendiga alusão ao
consumo; as clonagens dos cabelos; dos trajes; das poses e dos chavões; o
desespero e o pânico de um eventual dia mais sem um momento de protagonismo; o
ar para-descomprometido e para-descontraído de alguns, em que impõem
corporalmente que, estar escarrapachado numa cadeira, qual espreguiçadeira, é
sinal de profissionalismo. Enfim, tudo o que, deste pobre e insano calibre
existisse, Toninho repelia.
Repelia
também, todas as manifestações de solidariedade, exibidas pela comunidade
televisiva. Acartar feridas individuais para público tirava Toninho do sério. O
aparato criado pelos outros, só se justificava enquanto aguardassem a sua vez
para o desvalido, mas apreciado, estrelato da dor.
Misericórdia! Toninho sempre acreditou que o
sofrimento não é para ser sofrido nas televisões. Se tem horário de emissão não
é sofrimento.
É como
haver listas de espera para parir.
Folgava
em saber que havia muita gente que não queria, nem mortos, ir para a televisão
sofrer.
Ria, mas
com certa preocupação, pensando nos exemplos a repudiar.
Gostava
de aconselhar, sempre que estava com amigos, para se ter cuidado com as
vocações, para não se correr o risco de ser recrutado para uma televisão.
A
desqualificação era, até ao tutano, intolerada por ele. E a desqualificação
massiva, sendo a dominante e a que mais rapidamente se reproduz, destrói
futuros, presentes e passados. Está a invadir tudo! É praga e de dimensões
epidémicas!
Ficou
adepto de quem ia viver para o estrangeiro. Sentia-se libertado com mais uma
levada de gente a ir trabalhar para fora. Sentia que mais alguns estavam a ser
poupados à exploração e à gatunagem. Sentia que eram mais alguns poupados à
corrupção. Sabia que alguns iriam ter oportunidades de qualificação, não se
deixando embrutecer pela trivialidade da cidadania em off.
Sabia
que a realidade não era assim tão doce, mas sentia e sentia alívio.
Sempre
se confraternizou com o elevado valor do altruísmo e do gregarismo.
Não se
queria deixar adormecer pelos princípios acríticos desta gente e desta
funcionalidade. Destes protagonistas, escapavam poucos. Muito poucos!
Chegou
uma vez a perguntar, no hospital onde trabalhava, quem eram algumas das pessoas
que tinham escrito alguns dos livros que se encontravam entre os mais vendidos,
que via nas livrarias.
Tinha
clara noção que esta classificação, a ser verdadeira, só podia ser um incentivo
à compra. De outra forma não via sentido.
Sabia
que os nomes estavam em português, mas não sabia quem eram os corpos desses
nomes. Tudo se agravava, severa e irremediavelmente, quando a capa do livro era
uma fotografia da pessoa que o tinha escrito. Nestes casos, pensava Toninho, o
arrojo e a pouca vergonha ultrapassavam o egocêntrico narcisismo, na sua pior
flagrância. Agravada pela indecência com que, descaradamente, faziam a difusão
das responsabilidades, referindo que tal decisão tinha sido alheia à vontade do
próprio ou da própria. Misericordiosa pobreza!
Não se
pasmava com isto, era por mera informação, pois era sabedor que a leitura não
sendo prática corrente por aqui, o número de exemplares vendidos não podia ir
além do número de dedos de uma mão. Mais ou menos isso! Não era preocupante. Se
as vendas forem muitas, há sempre a possibilidade de se desconfiar que foi o
próprio autor a comprá-los. Faz sempre jeito, para os presentes de aniversários
e de outras festividades.
Os
outros, os de ler, nunca estão a concurso, continuava o pensamento. Sim, os
livros de merecimento, pensava Toninho.
Ler,
concluía como se o seu pensamento fosse audível, não é só saber identificar,
decifrar e interpretar um palavreado escrito.
Ler não
é apenas a aquisição de material informativo.
Ler é
injectar sentimentos na informação decifrada.
Ler é
crescer.
Ler
também é interpretar-se, porque se interpretou. Interpretar e em gáudio.
Ler é
sentir e sentir-se.
Ler
encaminha o indivíduo a si próprio. Torna-o gente. Confronta-o e prepara-o para
receber o outro.
Ler é
altruísmo porque é pensar o outro.
Ler serve
para despertar sentimentos e mover actualizações de pensamentos.
Ler
serve para tornar infinitas as sensações.
Ler
desmonta preconceitos e formas rígidas e passivas de sentir.
Ler é
trabalho, é produção de gente.
Ler é
renovação e é mudança.
Ler é um
anti-estagnante e um desenferrujador na sua mais potente forma.
Ler é
contrário à paralisante ordem social das coisas.
Ler move
percepções.
Ler é
lutar contra à mansidão e o conformismo, onde livro é a arma de guerra.
Ler, se
para aí se está, ou se pode estar, virado, não é ler o manual de instruções da
televisão nova.
Contudo,
ninguém lê! Pensava franzindo a testa como que resignado! Como mudar?
Questionava! Generalizando, ler os TOP(s) e os semelhantes familiares, não é
ler! Só se fossem os TOP(s) de outro povo, rematava com uma ligeira
ruborização. Ajustou-se, alastrando o mal para muito além dos TOP(s) e,
esforçou-se, tirando um ou outro desse ranking livresco!
Quando
não se lê, obviamente, só se pode gostar de televisão. Prioritariamente, mas não
em exclusivo, dos apresentadores e apresentadoras dos programas de
entretenimento (assim designados), em feroz competição para verem quem grita
mais, quem gargalha mais desbocadamente, quem mais alto fala e quem mais e
melhor cacareja e papagueia.
Isto,
numa versão, sendo a outra, igualmente calibrada pela mesma qualificação, a que
usa a alternância, traduzida por um ar piedoso da criatura que apresenta,
alternado por uma satisfação sorridente e corpo saltitante, induzida por um
jogo a dinheiro, que tanto pode ser ganho no estúdio como em casa assistindo
sentado no sofá, com o telefone ao lado.
Em todo
este povo há o hábito de não perderem uma oportunidade para falarem de si ou
dos seus convincentes e experientes pontos de vista, transformados em contributos
para a certeza (pela via de o “…eu por exemplo…”! Transformam-se,
imediatamente, em modelos exemplares!).
Há
também os programas, em que os prémios vão para quem mais sofre e tem a vida
mais escavacada, desde que a exponha em público.
A
desgraçada da mulher, que ainda agradece por estar na televisão a debitar todas
as desvalias da sua vida, em escala pormenorizada, lavada em lágrimas (que
também aconchega a cena), cheia de dívidas; os filhos humilhados na escola; o
marido desempregado; o frigorífico vazio; o sogro cego a seu cuidado; as
moléstias sem darem tréguas; os dentes todos cariados; água e electricidade
cortadas; o senhorio diariamente à porta; ter que aturar as meninas da
assistência social a vomitarem ameaças e moralismos (tão fácil de fazer com as
mazelas dos outros!), fingindo que estão em franca protecção para com os
menores,…, não é suficiente para fazer calar quem está a entrevistar!
Decididamente que não! Além de ainda ter que ouvir um sábio conselho
(invariavelmente na forma de “…mas é uma mulher forte e de coragem, que eu
sei…aplausos aqui para a nossa Maria, por favor…”), ainda tem que participar na
alusão à glorificação da miséria, do sofrimento, da sujeição e da pobreza,
através das palmas.
Aplaudir
a penúria dos outros.
Ganhar
dinheiro à custa da miséria dos outros.
Os bons
e aliviantes conselhos dados, acompanham-se de um fabricado ar de lamento,
esgalhado pela moça ou moço do programa, mas logo esquecido pelo entusiasmo
contrastante com que debitam, num sorriso patético, mais duas ou três vezes o
número de telefone, já decorado pela plateia que também repete em coro e
aplaude. Lasca Toninho!
Maldita
fraqueza que impele o povo a tanto exercitar o terrífico, pobre, primário e
egocêntrico narcisismo! Acrescentava, pedindo, um pouco que fosse, de bom
senso! Desiludia-se sabendo que estava a pedir muito!
Lembrou-se
que o rol não termina no pessoal do entretenimento. Há muito mais!
Aliviou-se,
rindo-se da coincidência, quando pensava no povo que, na televisão, revistas e
afins, comenta a vida dos outros, esmiuçadamente em todos os pormenores, à
excepção da inteligência altruísta e da humildade que não têm, apesar de lhes
serem feitas alusões.
A
gravidade assume caracterizações dantescas quando se atrevem a publicar (o que
chamam livro) os próprios mundos narcísicos, adornados com um parecer
altruísta.
O
problema também passa por existirem editoriais comparsas com a industrialização
e comercialização do mau. Desde que dê lucro!
Isto é a
quantificação do nada. Em valor real é a ode ao vazio. Continuava Toninho!
Um
empate a esta gente toda, na maioria das vezes é o justo, arbitrava ele.
Será que
está justificada a imagem recorrente que tem, quando pensa nestas coisas? Lá
lhe apareceu novamente a imagem de alguns hominídeos de gravata e de saltos
altos! Apetrechados, agora, de um livro, nunca aberto, debaixo do braço.
Tinha
sido uma construção de pensamento!
Na rua,
a história era outra. Fora de casa, Olívia queria e gostava de ser casada.
A sua
vida profissional dava-lhe liberdades de tempo para as futilidades de que
gostava.
Sabia
bem como tirar proveito disso.
Não
perdia tempo, como o marido, preocupando-se. A vida dela era para ser vivida e
por ela, dizia cantarolando.
Enquanto
Toninho se embrenhava nas suas questões de cidadania, Olívia entretinha-se com
as dela.
Andava
ocupada com a escolha de roupa para o aniversário de uma conhecida, que ela
designava por amiga.
Toninho
raramente acompanhava a mulher nos programas dela.
Ela, em
abono da verdade, apenas gostava de confirmar que era sabido que ela era casada
com ele. Não fazia guerra por não aparecerem juntos. Até preferia assim.
Gostava
de ser fotografada juntamente com o mulherio que funcionava como sua
referência, para se ver e admirar numa revista qualquer especializada nos
assuntos da sua valorização ou nos assuntos da nulidade, no dizer de Toninho.
Fazia
sempre questão de dizer que era casada.
Olívia
gostava, particularmente, dessas fotografias onde estão as moças todas de três
quartos, mais ou menos encaixadas umas nas outras, com o habitual jeitinho de
pé para o charme, desalinhadas por cima porque umas são mais compridas e outras
mais rasteiras.
Sem ser
através dos comprimentos e dos volumes, é difícil fazer-se a identificação,
ria-se Toninho, quando Olívia chegava a casa já com a página da revista aberta,
onde estava a fotografia com ela e as conhecidas.
Ela
gostava de ler o seu nome na legenda da fotografia, junto com alguns nomes com
que ela lambuzava o seu ego.
Riam-se,
sem que ele desviasse os olhos do que estava a ler, quando ela lhe contava,
sentada no braço do sofá onde ele estava, que fulana ou sicrana já há meia
dúzia de anos que não passava dos 29 anos.
Para
esse povo, o problema da idade era tão grande quanto o da solteirice,
finalizava Toninho, dando o indicativo que já não queria ouvir mais.
Com o
nascimento de Maria Teresa, Olívia ficou grata a tudo o que fosse santa e
santo.
Toda a
gravidez foi vivida, contrariamente ao que temia Toninho, com toda a
normalidade.
Ele
chegou a ouvir Olívia dizer, ao telefone, que gravidez não era doença.
Devia
estar a conversar com outra mulher, daquelas que ela gostava de estar horas ao
telefone para dizerem coisa nenhuma.
Só podia
ser!
Sê sempre o meu presente, Paulo.
Janiel
Fonte das imagens: Janiel Martins |