IN-SENTIDOS
e na beleza de ver o sol nascer
Deixei-me ir
Sem outro caminho
a não ser o rasto do belo
O blogue – Comer e Saber – apresenta-se com o intuito de exterminar amarras. Impera-se em três rubricas: Sustento da Alma; Café com Letras; Gastronomia e Culinária, como ferramentas de promoção e fomentação de liberdades e pluralidades. Movimenta-se na consciencialização da noção de direito às criatividades, no débito da conjugação dos intrínsecos conceitos de SABER (enquanto fonte de SABOR) e o de SABER (enquanto fonte de CONHECIMENTO).
Vô, cadê a minha mãe?
Vai demorar?
Vai sim, meu filho.
Ela falou que ia pegar uma estrela pra tu.
Tu quer ir lá com eu?
O vô não sabe o caminho. Descobrirás depois de tu crescer.
Tu acha que ela foi como?
Será que um pássaro levou ela?
Acho que não, meu filho.
Será que ela criou asas e foi?
Vou tentar
voar.
ARTE - SANATO
29 de Julho a 07 de Agosto de 2022
Galeria de artesãs e artesãos: alguns rostos de significado...
Paulo Passos
Em: https://sai-qolo-gi.blogspot.com/2021/07/recomendacoes-duma-psicologa-de-familia.html
Sim... uma psicóloga.
Moça ainda nova (beirando os
30), mas convicta (aparentemente).
É uma psicóloga de
família.
Psicóloga de família... e de
outras coisas.
É uma psicóloga conselheira.
Chama-se Jéssica Patrícia.
(Diz-se: Dr.ª Jéssica
Patrícia.)
A Dr.ª Jéssica Patrícia é
muito urbana.
Os
"ímpros".
"Ímpro"
é uma variante de "hiper", quando aplicada aos hipermercados.
Hipermecado
ou "Hiper", para facilitar a comunicação.
"Ímpro",
para os criativos.
(Para
dizer a palavra "ímpro", basta verbalizar a primeira sílaba (ím), que
a seguinte aparece logo. Mas tem que se carregar bem no "í". Quando
assim pronunciado, surge logo a palavra completa e fica tudo composto e com o
destino traçado.)
Vai-se,
então, ao ímpro.
As pessoas vão ao ímpro.
O ímpro serve para fazer
compras e para passear.
Ir
ao ímpro, em família, é uma recomendação que a psicóloga Jéssica Patrícia
aconselha.
Uma
sanitária (aproveitando a moda do vocábulo) recomendação.
Sanitária
e sem dar trabalho, pelo cariz voluntário que a veste, reveste e torna a vestir
(tal como o vira que vira e torna a virar...).
São
muito acatadas as recomendações da psicóloga de família e de outras coisas,
Dr.ª Jéssica Patrícia.
Além
do aconchego familiar, há o convívio ("combíbio", para os do Norte)
social.
São
recomendações da psicóloga Jéssica Patrícia que, numa prescrição que pode ser
diária, há a recomendação de, aos domingos à tarde, o efeito ter mais impacto
sobre o prazer.
O
ímpro e o domingo à tarde, são quase um mercante fenómeno de engenharia social.
Nas
tardes de domingo, as recomendações assumem, então, o seu momento áureo.
Sem
contra-tempos, sem indecisões e sem contrariedades.
Vai-se.
Estacionado
o citadino e utilitário veículo de 5 lugares (ou carrinha de 9 ou, até, de
caixa aberta), vê-se o desfile de criaturas protagonistas (ainda em formato de
aroma de partes de pijama cansado) em direcção à porta, que se abre só (e em magia), do
ímpro.
O
determino da mãe retira o carrinho para as compras.
Assume
o comando do veículo, assim como de todas as outras exigências.
Ainda
com réstias do mau humor, fruto da zaragata na hora da refeição (por via do
excesso de vinho emborcado pelo marido e sogro), vai no comando, empinando mais
ainda o colosso conjunto de duas mamas que a enfeitam e se salientam sob a
blusa prateada, bem colada ao corpo.
Arrasta
consigo a velha-mãe que se agarra na lateral do carrinho (amparando-se,
querendo acelerar para acompanhar o génio da filha, mas a perna... já não vai
lá...), e que, num preparo pensado, se exibe lenta (das dores propósitas), de
legs côr-de-rosa, sapatilha branca com aplicativos dourados e t-shirt justa ao
corpo, da côr que mais achou ao agrado.
O
marido e o sogro seguem-lhe a peugada, levando, de vez em quando (ambos), e por
via do audível arejo fugido pela tubagem inferior, um sopapo ofendido, nos
bandulhos, dado com a mala, junto com um sacudido e humilhante:
"porcos". A velha, aproveitando a culpa já atribuída aos outros,
dispara no mesmo sentido (para trás), num alívio que lhe põe um pálido sorriso
no rosto. E segue viagem...!
De
nada se apercebe, a velha, para além do alívio, das dores e da admiração pela
sua sapatilha com aplicativos dourados.
A
filha adolescente, trajada a gosto, segue num afastamento que lhe é devido às
imposições das conveniências, sem retirar o olhar do telemóvel que segura e
exibe com invejável honra.
O
rapaz, aluno da 2ª classe, aproxima-se do pai e do avô, mas sempre vítima dos
puxões dados pela mãe, para o afastar da proximidade da zona, farta em
indesejados odores. Segue, então, o pequeno, entre a parte de trás do cortejo e
a parte junto ao andor, numa luta com um pujante obstáculo nasal que o invade,
quase até ao cérebro, que esgravata com a falangeta do indicador direito,
integralmente metida na narina, acompanhado do revirar de olhos e franzir de
nariz, para melhor apanhar o jeito.
A
sobrinha, pela parte do marido, 18 anos acabados de fazer e vestida na sua
orgulhosa moda de igual à moda, acompanha a procissão, com a primita de 10
meses ao colo, esta de bandolete amarelinha, elástica e com laço conforme, a
prender as penugens que teimam em rarear, numa parceria com diversos pontos do
ímpro, de onde emanam orquestrações gritadas dos infelizes berçantes, em
oposição aos incómodos trejeitos ambientais das famílias no ímpro.
Num
cumprido celibato emancipatório, lá vai a rusga no desígnio que lhe é de
opinião e satisfação, matando outros de inveja, esta parte já não tão
focalizada pela psicóloga de família (e de outras coisas), como é de bem.
Tarde
passada sem demais atributos.
Acompanhando
os roncos do sogro, já de volta ao paraíso familiar do r/c esqº trás de um
suburbano prédio de 12 andares, vão os resmungos da matrona, numa orquestra
onde se ouvem os pasmos silêncios da velha; os sons do telemóvel da filha; o
trautear de uma cantiga mal cantada (estrangeira) da sobrinha, tentando acalmar
o berreiro da criança de colo; os peidos do marido (que conduz) e os do filho
que gargalha em sintonia com o sorriso do pai...; num rogar de praga ao dia
que, invariavelmente se repetirá num futuro próximo (fds seguinte), no
cumprimento das sanitárias recomendações da psicóloga de família (e de
outras coisas), intitulada e auto-intitulada de Dr.ª Jéssica Patrícia.
Entusiasticamente
anseiam as próximas férias anuais, de duas semanas no Algarve.
Já de férias, numa tarde de chuva, limitante para praia, cruzam-se com a psicóloga de família e de outras coisas (a auto-intitulada Dr.ª Jéssica Patrícia), que lhes desvia o olhar, enquanto se dirige para a porta principal do ímpro. Vai na companhia do pai, da mãe e da irmã (recém divorciada), enquanto empurra um carrinho de bebé, onde está deitada uma criatura de poucos meses, dando já alta voz à sua peremptoriedade para com o berreiro e para com o infortúnio.
BLACK HOUSE
(Janiel Martins, RN/Brasil)
No escuro vivia Deus.
Deus pensou: porquê tanta solidão? Vou fazer outra noite.
Deus continuou solitário.
Somos a escuridão. Só viemos olhar o mundo. Caso contrário seríamos destruídos pela luz.
Edição: Paulo Passos
Em:
https://www.psicologia.pt/artigos/ver_cronica.php?o-gato-e-o-joio-iv&codigo=CR0041&area=
2019
Psicólogo clínico (Braga, Portugal)
"Comprar gato por lebre”
“Separar o trigo do joio"
"Diariamente, Maria Augusta e grande parte da massa dos seus colegas, engendravam meios e mecanismos de poderem ser alvos, de um momento que fosse, do protagonismo que servia de combustível para a sobrevivência de quem tinha enveredado por essa via de acesso às pretensas ascensões profissionais.
Era esgotante, mas era impossível desistir.
A desistência não cabia na cega luta por uma direcção ou qualquer outro poleiro de nível acima ao já em pouso.
O problema estava centrado no facto de toda a energia ser consumida nestes meandros. O que devia ser feito era, por norma, desviado do objectivo ou, na melhor das hipóteses, executado na sequência de um grande jogo do empurra. Acotovelavam-se sem quaisquer constrangimentos.
Dentro da universidade o conflito não espreitava, estava instalado de poltrona ao lado do cinismo.
Travestido sim, mas instalado e com raízes profundas.
Aclarar o conflito era a derrota.
Não havia embaraço algum em tomarem café (cafés) depois de uma cena de pugilado de olhares e acusações, no silêncio dos forçados e tensos sorrisos.
Tensos e forçados, mas pertencentes ao plano de sobrevivência.
Maria Augusta nunca perdia a oportunidade de se apoderar (para acrescentar à cábula) de mais uma citação, um título, ou um aditivo de seu interesse.
O manancial de referências era um dos motores do seu empenho.
Pouco tinha, do que suposto existir para uma profissional com expressão e enriquecedoramente livre.
Estava perfeitamente integrada na indústria dos títulos que caracterizava o que fazia enquanto docente, nessa mesma instituição, onde tão facilmente se acessa ao grosseiro e corrosivo plágio (assunto silenciosamente diluído, obviamente, pelos longos corredores repletos de gabinetes).
Maria Augusta, como muitos dos seus colegas, referia-se sempre, a este assunto de forma condenável, cautelosa e merecedora da atenção canalizada para a repreensão acesa e inconcebível, tentando manter a protecção do prestígio institucional (que habitava).
Havia quem questionasse se o prestígio era o institucional ou eram os dos melindrosos individualizados…!
De qualquer modo, não era conveniente existirem beliscos visíveis e muito menos que transparecessem fora de portas.
Era-lhe, no seu formal meio profissional e de modo corrente, atribuído o condão da escrita enfeitada.
Maria Augusta movia-se bem e com destreza no cenário formal das elaborações e formatações de textos, jogando com as palavras de forma inteligente, mais parecendo, até, estar em trabalho de decoração.
Fielmente esgotava-se no universo das exageradas notas de rodapé.
Valorizados (no arranjo do formato) eram os seus escritos, dentro da academia, mas, para muitos outros, eram ocos em produção de utilidade não decorativa.
Tanto abarrotava os textos com tão exagerado número de títulos e citações, com as suas mais recentes apropriações registadas nos seus cardápios de cábulas (impulsionadores fantasmas de um admirável cariz elevado de sapiência), que o despropósito e a incoerência debitavam-se em transbordo.
Qual gemidos emitidos entre dentes (ou pensamentos), eram comentários sobre rodapés que teciam uns dos outros.
Tanto se entrelaçou neste viciante jogo, abundante em sombreados de falseamento (mas tudo ali estava assim alinhavado), que se tornou dependente e incapaz de consciencializar que liberdades tinha o mundo para oferecer.
Também o poderia habitar.
Mas estava petrificada na mordaça.
Já não era capaz."
Em:
https://www.psicologia.pt/artigos/ver_cronica.php?o-gato-e-o-joio-iii&codigo=CR0036&area=
2019
Psicólogo clínico (Braga, Portugal)
"Comprar gato por lebre”
“Separar o trigo do joio"
"Maria Augusta era mais uma criatura que se confundia com a banal promiscuidade entre a ambição e a capacidade.
Tinha leccionado diversas matérias, contempladas no currículo do curso da universidade onde estava empregada.
Sentia um já saturado e embaciado orgulho, mas que ainda alimentava o quase pleno prestígio de realização, cuja ressonância lhe era constantemente canalizada para a intimidade falseada e magoada, mas silenciada pela compulsão ao disfarce, a que estava tão familiarizada.
Ainda assim, continuava Maria Augusta, a fomentar a miraculosa utilitária mania, quase fetichista, no seu enquadramento profissional.
Era uma ferramenta em constante actualização e, tanto quanto transparecia das intrigas internas ao seu serviço, era um elo de ligação geral das pessoas que ali se moviam.
Quase toda a gente tinha e sustentava essa ferramenta, protegida num secretismo individualizado e fortificado.
Mais não era do que um caderno com referências bibliográficas, títulos de livros, nomes de autores, citações, máximas, premissas, enfim uma vasta panóplia auxiliar dos segredos de cada um, materializados numa cábula crescente e auxiliar em todo o percurso profissional
Era um recurso constante, enfeitador do manancial redigido e oratório.
Titularia (industrial) no seu esplendor.
O conhecimento era muito mais amplo em títulos do que em conteúdos.
Da grande maioria dos livros só o título e o nome do autor se tinham cruzado com o olhar (às vezes… também a editora).
Mas isto não era impeditivo para grandes divagações, grandes discursos, conversas, comentários, expressões de deleite até, todos dignos de moldura. Poucos liam. Liam apenas o essencial (um resumo, uma sinopse…) para construção da confabulação, eventualmente necessária para transparecer num ou noutro contexto.
Era uma competição, eram homens e mulheres em silenciosas preces divinas, disfarçadas de conhecimento, a ver quem exibia o primor da novidade mais clássica ou da mais actual, constante no cadernito (agora em formato electrónico) e adquirido, descoberto ou copiado em última hora.
O sentimento partilhado estava tão entranhado pelo comportamento infantilizante, de esconder o tesouro de cada um, que impedia que se tornassem conscientemente maduras as atitudes dentro da universidade.
Um monte de papéis na mão e um ar apressado, meio sério e longínquo, preferencialmente com um lápis apontando subtilmente para os raciocínios que se vão fingindo ter, serve eficazmente para representação de invejável qualidade na tarefa e com a garantia de qualidade (ou de “excelência”, como em voga).
Império da perícia neste disfarce, a que se fingiam alheios.
Cenário montado… infausto elenco em palco.
Como professora, Maria Augusta, era só mais uma que ia participando e vivendo neste declarado enredo, entre os sorrisos das cores que a cada um fosse conveniente e consumisse menos combustível humano.
Nisto “também sou perita”, pensava de si, num invisível sorriso.
Tinha a particularidade do exagero, que se reflectia igualmente na matéria de recolhas.
Era uma acumuladora, tal como a compulsão para o coleccionismo.
Tinha cadernos e cadernos cheios com tudo o que se possa imaginar que fossem títulos, nomes de autores, excertos e citações.
Mas impunha e cumpria a regra de apenas as consideradas grandes referências no assunto. Tudo o que não fosse assim balizado, não constava nos cadernos das cábulas de Maria Augusta, sendo considerados escritos que integravam a heresia e a ofensa académicas, apenas por generalização do preconceito e não por terem sido julgadas por leitura avaliativa.
Eram inconcebíveis e proibidas, estava banalizado, tais misturas, no interior daquelas domésticas (apesar de ferozes) guerras. Não havia brecha possível. Desde que não estivessem balizados pelas medidas estipuladas nas ocasionais valorizações institucionais, muito material escrito era condenado sem julgamento. Um texto era crucificado, sem ter sido lido, apenas porque era proveniente de alguém, lugar ou instituição, que constasse na rigorosa lista a abater.
O prestígio era o alcance geral e valia tudo para o conseguir, ou manter, ainda que apenas por construção, subjectivamente, internalizada.
Despudor de qualificação máxima.
Farsa de boa roupagem.
Esbanjador despudor… despudor ao público."
Em:
https://www.psicologia.pt/artigos/ver_cronica.php?o-gato-e-o-joio-ii&codigo=CR0032&area=
2019
Psicólogo clínico (Braga, Portugal)
2019-05-26 | Idioma: Português
"Comprar gato por lebre”
“Separar o trigo do joio"
"Floreado pelo insistente e competitivo aparato maníaco, Maria Augusta narrava a sua história (convenientemente divergente da história vivida), num cenário viciado por um irredutível e acrítico formato bélico.
Nela, para além de toda a indústria titular académica existente, constava tudo o que era “pós”.
Eram pós-graduações, eram pós-formações, eram pós-especializações e até pós-sub-especializações, predominantemente, sublinhava, adquiridas em universidades credenciadas socialmente, sobretudo internacionais.
(Vá-se lá saber como!).
Aliás, Maria Augusta fazia questão de não ter nenhuma referência a formações que não tivessem, no respectivo diploma, uma luminosa e brilhante ribalta circundante do aparatoso logótipo da instituição, de invejável apreciação.
Este ornamentado manancial curricular (tão em voga) era o quase único responsável pelo excesso de confiança que a assolapava, sobretudo nas aulas e, como tanto gostava, nas exibições nos congressos em que participava. Nestes, quanto maior o nível de importância por ela atribuído, menor a gradação da confiança.
Está de se ver que, se o nível de importância não fosse de topo, na sua avaliação (mais social que outro qualquer registo), o manifesto excesso de confiança ladeava, seguramente, o delírio e a bizarria.
Nunca Maria Augusta ficava até ao fim dos congressos, por ela tabelados abaixo do topo. Nestes, apresentava a sua comunicação (nos formais trejeitos e cânones escolares, exibidos com os apetrechos da mais encenada confiança) e logo se retirava com o desprezo de segura vedeta.
Retirava-se com a rapidez que era necessária à conveniente imagem de pessoa muito requisitada.
Quase sempre, o intencional motivo que debitava para se ir embora, era um avião para apanhar ou uma reunião agendada (no mínimo, de alto gabarito).
Assim enfeitava a necessidade e o desejo de admiração e de grandiosidade, para além de uma certa inveja que também estava no intento e que Maria Augusta admitia gerar.
Acreditava, quase piamente, na perfeição dos cenários por si criados, impedindo-se, assim, de perceber que era a única pessoa a crer em tão banais e disparatados disfarces.
As delirantes viagens, invariavelmente para o estrangeiro e a convite de algum meritíssimo colega académico, para integrar o programa de um, também, meritíssimo evento, tinham o condão de esconder o café que iria tomar na esplanada da esquina da rua onde morava.
Era ali, já sentada, que se aliviava das dores nos pés que os sapatos de saltos altos lhe causavam.
Tirava apenas os calcanhares, numa disfarçada aflição, que pousava no rebordo traseiro dos sapatos.
Os latejantes joanetes, já libertados, ressoavam alívio sob a forma do suspiro que, controladamente lhe saia pela boca.
(Quando sentia os calos apertados, reforçava a dissimulação e o cinismo, crendo que se safava de mais um confronto.
Mas repetia-se até à exaustão das circunstâncias.
Maria Augusta, sabia em sintomas, mas não sabia em consciência, que não pertencia à elite que ela balizava, mas que tudo fazia para se sentir integrante do elenco dessa protagonização).
Esquecia-se sempre que, tentar enfiar os deformados e doridos pés, novamente dentro da forma dos sapatos, era um trabalho que nem a sua perícia em dissimulação conseguia esconder.
Nunca enxergava que o seu feitio não a favorecia perante a crueldade de tais imposições corporais.
Traía-a o corpo, escarrapachando-se nas feições as expressões do dolorido esforço.
Aos desequilíbrios, tentava Maria Augusta, desviá-los de si e sem os entender.
As dores… escondia-as num sorriso amordaçado.
Cambaleando e de mente embaciada, ia-se traindo…!"
Edição: Paulo Passos
Em:
2019
Psicólogo clínico (Braga, Portugal)
"Lá estava… de bota roçando o artelho e de joanete saliente.
Pescoço curto e a adiposidade acrescida no busto e nas ancas, camuflada por um arraialeiro, esvoaçante e comprido vestido, que a fazia sentir confiante e, delirantemente, poderosa.
Lá estava… Maria Augusta.
Maria Augusta era uma académica que, dentro dos limites da sua profissão, tinha a consideração institucional desejada, devida à sua estratégica obediência ao formalismo imposto, o que lhe conferia uma confiança legítima e protagonizada por uma certa despreocupação, causada por uma certeza cega, impedindo a manutenção da útil crítica.
Mas mais não era do que o habitual esperado e comum da maioria dos seus colegas e do geral integrante da vida académica, tida como profissional.
Salvo sejam as excepções, tudo era, sobretudo, um papel a desempenhar num invólucro plastificado de estatuto.
Prestígio, fama, admiração e conquistas invejáveis, eram as intenções nas fundações de Maria Augusta.
Não sabia como iria encontrar isso no meio profissional em que estava, mas sabia que iria descobrir.
Não sendo limitada de todo, no que se refere ao ajustamento avaliativo que, de sua conveniência, passou a manter apurado, aprendeu que não podia, ali na universidade, reger-se exclusivamente pelas peças que compunham a sua habitual roupagem.
Aqui, pensava, porque reparava, exigia-se um outro disfarce.
Confiante na sua perícia em dissimulação, sabia que tinha que integrar no seu traje regional a farda que decora o academismo.
Insaciavelmente receptiva ao disfarce, facilmente percebeu quais os itinerários psicológicos a que tinha que recorrer e que tinha que percorrer.
A isto se obrigou, sem esforço, Maria Augusta.
Posicionar-se de modo mais polido e menos exuberante, nas suas exigências mais caprichosas, dentro do emprego, passou a ser a norma.
Era uma condição.
Percebeu que exuberância excessiva e pouco polimento, no manifesto, facilmente se transformariam em obstáculos à sua integração profissional.
Evitar a catástrofe de se cumprir a fatal hipótese de exclusão, tornou-se prioridade na sua vida.
O percurso é selectivo e competitivo, pensava, mas não é difícil.
É um percurso que está travestido de impedimentos e de penoso trabalho, mas isto é apenas uma camuflagem, uma encenação intrínseca que dava jeito, cogitava.
Só tinha que se vestir de rigor, em académica.
Muita parra e pouca uva foi o aforisma que viu escarrapachado naquele meio.
Avaliou e interiorizou, passando a ser, também, a sua invisível arma de precisão.
Nestes esquemas era ela já catedrática.
Complicar o óbvio (!) - o que era isso para Maria Augusta, sorria entre dentes.
Tinha-lhe apanhado o jeito.
Controlando a impulsividade, sem estoirar (está de se ver!), aprendeu a planificar.
Foi-lhe de extrema utilidade.
Adquiriu novas ferramentas de manipulação.
Mais severas, perigosas e desumanas, sem dúvida, mas eficazes.
Mais civilizadas, dizia para si e para seu gozo, acabando por se divertir.
Estava integrada.
A partir daqui o trabalho seria o de cumprir as metas e em tempos mínimos.
Era uma escada que, diziam, como que a demonstrar avisos e alertar os perigos de eventuais criações de novos costumes. Tanto se sobe como se desce!
Essa seria a escada que Maria Augusta tinha a garantia de apenas subir.
E rápido!
Tudo estava incutido na teatralização.
O discurso (como convinha) era o do rigor, da ciência, das noites não dormidas, do estudo intenso, das infindas leituras, enfim da dura vida da seriedade académica.
A fotografia tinha que ser a da conveniência.
Isto é para lactentes, pensava Maria Augusta.
Nada que lhe tirasse o sono.
Estava em casa.
Já achava graça ao ar de superioridade que era obrigatório exibir por tanta alma, alterado no imediato, como um simples trambolhão dos saltos, quando se cruzavam, inevitavelmente, com alguém de respeito e admiração acrescidos.
A acta do reconhecimento estava repleta de candidaturas, todas elas floreadas com as mais altas condecorações e atributos vulgares no reportório académico.
O que era raro passou a ser banal, de tanto badalado mérito.
Cada currículo era um manancial de louvores e de acessibilidades conseguidas à luz das cabeças adeusadas.
A confiança estava instalada.
Tinha percebido o esquema e pouco faltaria para também dar cartas.
Era apenas um cenário de, mais ou menos, disfarçada guerra.
O que era isso para ela, quando aos três anos já ia para o infantário toda esborratada de maquilhagem, posta pela mãe.
Disfarces? Ensinar disfarces a Maria Augusta!?
Como se ela não fosse filha da sua mãe…!"