segunda-feira, 1 de agosto de 2016

SUSTENTO DA ALMA - GENTES E OUTRAS DORES DE "VIDAS SECAS"


Graciliano Ramos, escritor Nordestino do Estado de Alagoas / Brasil (1892 - 1953).


"Vidas Secas", romance de Graciliano Ramos, puro exemplar da conceptualização
por ele definida e incrustada no seu próprio dizer:

 "A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."


... para ser dita, fecundada e feita pregão, com o tesão da verdade ...


... a palavra que jorra transparências, que jorra verticalidades ...

 ... palavra ... a da honra, a contadora de coisas, de honestidades ...!!!

Dizem, através da própria existência, pelas palavras de ouro genuíno de Graciliano Ramos.


Vidas de honra esmurradas e amordaçadas  pela força da corrupta opulência, 
pela corrupta soberba e pela corrupta e cega ganância de poder ...!!!

Vidas de dor, manchas de sofrimento, ornamentadas de sangue ...
... em lições de vida ... lições de ser ... lições de gente que conhece na pele ...
... a promiscuidade das desigualdades, a desgraça dos infortúnios e os azares da nascença ...!!!

Escolher em liberdade e de igual ... Filhos da Puta ...!!!

FILHOS DA PUTA ...!!!

 Quem pode escolher com barriga vazia, alma oprimida e mente enganada ...???   

Vidas Secas ... com ...

Fabiano
Vitória (Sinhá Vitória)
 Meninos (o mais velho e o mais novo)
Baleia (cachorra) 


Homenageados e revisitados no conto "JORRA HOMEM DELE", 
do psicólogo Paulo Passos (Braga / Portugal, 2015), transcrito abaixo,
pela via do aldeão pastor Fabiano, a mulher ... a aldeã Vitória, o filho (simultaneamente
o mais velho e o mais novo) e a fiel e presente em verbo, corpo e alma ... cachorra Baleia.


" JORRA HOMEM DELE

            O rebanho descia pela serra em direcção ao curral, acelerando em obediência aos chamativos, repreensões e orientações de Baleia. Era um trabalho tão satisfatório que não se via um momento só de repouso naquelas quatro patas, nas orelhas vigilantes e no ladrar que só cantava gratidão. Cadela parda, pouco devedora aos atributos da estética canina, de nome Baleia, por ter nascido com tamanho e peso muito maior que o resto da ninhada. A completar dois anos de idade, Baleia era feliz no seu paradeiro porque galardoada pela sorte de ter como lar, a mais acolhedora cabana de montanha e, como família, o seu fiel amigo Fabiano (a quem chamavam dono). Baleia era comparsa e companheira de todos os ânimos. Desconhecia o rancor.
Viviam no júbilo das suas livres vontades e congratulavam-se, várias vezes ao dia, pelo amparo que sustentavam um no outro. Onde estava Fabiano estava Baleia e onde estava Baleia estava Fabiano. Nunca se impediram nem obstaculizaram. Só eram precisos os dois.
             Fabiano andava pelos 30 anos. Viúvo desde há quase 2 anos, após o acidente que a camioneta da excursão teve, no regresso à aldeia, já noite entrada, que lhe ceifou a mulher e o filho, ainda por completar os três anos. Era uma das muitas excursões que se faziam por ali, dando a conhecer outras paragens e outras gentes. Fabiano era de sair pouco, mas não era impeditivo dos gostos da mulher. Vitória, assim de seu nome, não perdia uma excursão. Aldeã por inteiro, Vitória era mulher bailadeira, gaiteira, alegre e feliz com os seus pertences na vida. Vivia o filho e o marido. Não precisava de Fabiano para dançar nas romarias. Dançava com as outras.
Daquela vez tinham ido ver o mar. Farnel num lado, garoto escanchado no outro lado da cintura, lá foram, madrugada fora, para o local habitual de partida, que era sempre na praceta pelas traseiras da Junta de Freguesia. Era ali, o único local onde a camioneta conseguia fazer a manobra de inversão de marcha.
Fabiano acenava, já estavam em marcha e, sorridente, voltava para casa sentindo os prazeres de uma folga da família, por que certo que voltavam. Gostava dos seus momentos a sós. Era ele que se entendia. De cigarro no canto da boca, mãos nos bolsos das calças, assobio que não entoava, mas trazia-lhe o sinal da tranquila felicidade.
A alguns quilómetros da aldeia, no regresso da excursão e sem forma de evitar, a camioneta despista-se derivado a óleo que estava na via. Embateu de lado contra as árvores que ladeavam a estrada à esquerda. Era desse lado, nas primeiras filas da camioneta, que Vitória ia sentada. Dormitava, com o pequeno a dormir no colo. Mal se apercebeu. Foi tudo daquele lado da camioneta. 
A notícia foi recebida por Fabiano, com o silêncio e a dor que não prendia as lágrimas. Desciam-lhe pelas faces. Tinham apenas o amparo da barba que naquele dia não tinha feito. Ficou como apenas os silenciosos eleitos para o Nobel do Desamparo podem estar.
Chorava Vitória, não com o lamento da viuvez, mas porque amava. Vitória sempre tinha sido a festa de Fabiano. Chorava o filho de modo diferente. Era dele. Tinha sido dele.
No percurso para casa, Fabiano estipula que não pode continuar a viver na sua casa. Nunca tinha sido a sua casa. Sempre fora a casa de Fabiano e Vitória.
Habilidoso, curioso, com jeito para tudo, mas sobressaía o jeito de mãos. De profissão de registo, era pastor. Em simultâneo, também era artesão.
Comodamente afastado da aldeia, mas mantendo-se na proximidade para as necessidades, Fabiano começa a construir a casa que iria ser a sua. Era uma cabana de madeira. Tinha projectado e desenhado na sua cabeça um piso térreo com alpendre e uma falsa. E, certamente, o curral para a sua carneirada. A falsa seria o quarto. Exclusivamente para ele se encontrar com Vitória. Seria um quadrado com a escada à esquerda, de acesso ao piso térreo. Teria uma janela no tecto, sobre a cama, para quando quisesse encontrar Vitória no brilho dalguma estrela. As paredes eram as da casa. Colocaria apenas um gradeamento de protecção. A cama seria baixa, aconchegadamente coberta com o que fosse de tempo. Iria encher as paredes com os seus trabalhos de madeira esculpida. Adicionaria cores. Várias cores, harmoniosamente seleccionadas para cada objecto. Não estava de luto. A luz viria apenas das laterais da cama. Não queria luz vinda de cima. Essa estava destinada só para Vitória. Ali passariam a ter os seus encontros.
No piso térreo, muita ternura pôs Fabiano em tudo o que fez. O canto onde colocou a lareira era de um aconchego tal, que só amando se pode conseguir. O alpendre era um lugar de fantasia. O curral construiu-se com tanta dedicação e gosto, como qualquer outra parte da cabana. Ficava contíguo, pelas traseiras.
Mudou-se logo que pôde. Mudou-se de inverno. Instruiu-se, durante a sua vida, nos requintes dos pormenores. Casa aquecida, panela de sopa de legumes no fogo de lenha, enquanto preparava uma rasa malga de leite, destinada à cadelita que tinha acabado de adoptar. Ainda bebé, não parava de seguir Fabiano, lançando latidos, já de confiança, quando Fabiano a baralhava nos itinerários que fazia na casa. Depois do leite bebido, lançava-se como podia para Fabiano e enroscava-se nele exigindo a protecção e o carinho que lhe era de direito.
Fabiano e Baleia construíram-se assim, sempre ligados. Era só com Baleia, que se sentia acompanhado.
No pastoreio, Fabiano ocupava o tempo a projectar as suas inspirações artísticas. Baleia guardava, reunia e vigiava o rebanho. Dava, perfeitamente, conta do recado. Só precisava da presença de Fabiano. Ainda tinha tempo para a soneca, sempre encostada em Fabiano. 
Ela era a guardiã. "

\\\\\\\\\     /////////     \\\\\\\\\     /////////

Fonte das imagens: Janiel Martins


3 comentários: