Da riqueza de simbolismos expressa na crónica,
de salientar um esclarecimento, dado pelo autor, referente ao título:
"(...) há fome no mundo e, Eleutéria, de seu genuíno direito,
precisava de favorecer o seu intento, trocando o
pé(nis) disfuncional de Aristides Galante que,
com ou sem culpa, já não aguentava mais traição."
|
TROCAR UM PÉ POR UM PÉ DE BOI |
Paulo Passos
Publicado em: www.psicologia.pt (21 de Abril de 2019)
"Eleutéria era, também de corpo, um mau feitio.
Tinha uma linha que a seguia de cima a baixo, sem necessidade de cumprir quaisquer curvas, mas quando a medida era tirada de perfil, a linha contornante do seu corpo já exibia grandes lombas para a diante.
Tudo isto, adicionado ao seu tamanho, que não ia além de um metro e pouco, construía um panorama que implicava comentários com ou sem graça, consoante os gostos e as intencionais aventuras.
Agravava tudo com o carnaval que punha em cima de si.
Estava com um fato de banho de perna, amarelo e azul-claro às riscas horizontais.
Vários colares garridos saíam-lhe pelo pescoço, a contornarem o seu grande e sustentado par de mamas, terminando suspensos e a abanar por toda ela, que rivalizava com uma montra de bugiganga barata, com o produto todo amontoado.
Usava uma touca na cabeça, de borracha amarela com flores cor-de-rosa, que abanavam com os movimentos, por serem fixas apenas ao meio.
Na areia ou na água, nunca aquela touca saía.
Quando ia ao mar, a água não lhe subia mais que meia perna.
Tinha medo e as ondas faziam-lhe cócegas provocantes.
Molhava-se, apenas no rescaldo da onda, baixando-se e salpicando o corpo com uma mão, enquanto se apoiava na neta Glória Micaela (indiscutivelmente chamada de Glórinha, tanto pela fragilidade do corpo, como pelo cariz nervoso e trémulo com que a criatura se apresentava), para se manter equilibrada.
As alças do fato de banho, muito vincadas nos ombros, pela cedência da camada gorda que lhe forrava o corpo, contrastavam com o vermelho vivo, já em ferida, da pele queimada do sol.
Independentemente da temperatura da água e das condições do mar, os gritos e gargalhadas eram intermináveis, durante todo o tempo que lá estivesse.
A pequena Glórinha estava forrada com um creme branco, colocado em pasta, para a proteger das radiações solares. Na cara só se viam os olhos.
Usava, tal como a avó, uma touca de borracha na cabeça para não molhar o cabelo. A touca de Glórinha era toda cor-de-laranja, mas com relevos que desenhavam formas de peixes. Condizia com o fato de banho onde a pequena estava enfiada, que também era cor-de-laranja, com uns favos salientes em branco, que a faziam parecer insuflada, em sobreposição à sua frágil estrutura.
Não saía da zona de sombra do guarda-sol de praia, por imposição da avó. Podia sair dali quando a avó ia à água e a levava para nela se apoiar.
Quando regressavam ao guarda-sol, invariavelmente era feita uma visita à imponente caixa térmica.
Eleutéria nunca a voltava a fechar sem estar já a mastigar alguma coisa.
Glória Micaela, alternativa única de nome e estipulado pela junção do nome (Glória) da tia-madrinha materna, e da filha desta (Micaela), prima quatro anos mais velha, era uma criança diminuta, em questões de apetite.
Nunca um vendedor de bolos, bebidas ou gelados, que circulavam pela praia, por ali passava sem que Eleutéria o mandasse parar.
Escolhia sempre alguma coisa.
Aos refrigerantes, não dava tempo de o vendedor fazer o troco do dinheiro, na bolsa que trazia na cintura, para onde tinha que olhar.
Quando olhava para ela já a garrafa estava vazia e ela com o braço esticado a pedir outro, enquanto enterrava o fundo da garrafa vazia na areia.
Avistou um vendedor de gelados.
O rapaz ouve o chamamento de Eleutéria e freou-se, qualificando o seu produto.
Não era preciso tanto trabalho pois era certo que Eleutéria ia comprar um gelado para Glórinha e outro para si.
Escolheram e, enquanto Eleutéria devorava o dela, a neta lambia, pasmada e lentamente, o seu.
Um calor sem tréguas e, pouco tempo depois, já Glórinha era um vale de gelado derretido.
No pouco chocolate que ainda se prendia ao pau, pousou e colou-se uma descomunal mosca vareja esverdeada.
A pequena, sem se aperceber, continuava a lamber de um lado, e a mosca satisfazia-se do outro.
Eleutéria vê aquele preparo, sai disparada para junto da neta, dá uma sacudidela para afastar a mosca, mas vai tudo. Vai mosca, vai gelado e vai Glórinha, que pega num berreiro, aumentando a javardice em que toda ela já estava.
Estava melada até à alma.
Era gelado derretido, era ranho, era creme solar, era areia, eram lágrimas, era baba, era a avó a reclamar, enquanto agarrava em toda aquela tralha para se irem embora.
Tinha-se acabado a tarde de praia.
Em direcção à estrada, ia e resmungava Eleutéria, atulhada de sacos, guarda-sol, caixa térmica, e um grande saco com tudo o que era brinquedo de praia da neta.
Eleutéria ainda não tinha tirado a touca da cabeça e era seguida por Glórinha, que ainda não tinha parado de chorar.
Atravessaram a estrada e Eleutéria estatelou toda a tralha no chão, despejando-se numa cadeira da mesa onde o marido estava sentado de esplanada.
A mesa já estava atulhada de canecas vazias e de pratos com cascas de marisco que Aristides Galante tinha comido.
Eleutéria chamou o empregado, pediu uma garrafa de vinho branco fresca, camarões e um gelado para a neta.
Aristides Galante pediu mais uma caneca de cerveja.
Não tinham nada para dizer.
Aristides Galante era um poço desmedido de subalternidade para com a mulher.
Nunca foi considerado em nada, exceptuando-se a consideração elevadíssima com que era contemplado, pela garantia do dinheiro que injectava na família e sustentava os cartões dourados de Eleutéria.
Dentro de casa, Aristides Galante, não era tido nem achado.
Vendo-os na rua, ele era um penedo que seguia, sempre dois ou três passos atrás, a gaiteira e determinada mulher.
Homem rude, estatura média, abdómen bem saliente, tinha conseguido fortuna à custa do seu trabalho, digno de se dizer! Mas também às custas de algumas estratégias menos transparentes e de malabarismos que escondiam meandros que Aristides Galante tão bem conhecia.
Trabalhava na construção civil desde os seus onze anos de idade, altura em que saiu da escola com a terceira classe.
Burgesso era a sua natural evidência e lucro era o seu maior objectivo - pilares da sua existência.
Fora de casa e, sobretudo no trabalho, não tinha pejo à exploração de outros e dos próprios funcionários da empresa. Nestes, no que dizia respeito ao pagamento que lhes eram devidos, arranjava sempre forma de cortar no número de horas trabalhadas.
Já dava para mais uma mariscada bem regada, que tanto apreciava.
Nunca passava muito tempo sem que a maior travessa, na marisqueira que mais apreciasse, não estivesse transbordando à sua frente, juntamente com fartas canecas de cerveja, onde as comezainas entravam bem pelo tempo adentro.
Já recostado, arrotava Aristides Galante, enquanto tirava bocados de marisco dos dentes, com uma unha de lagosta.
O suor que lhe escorria pelo rosto era afastado com as costas da mão, ainda com a pinça de um lavagante presa pelos dedos.
No rebordo da mais recente caneca de cerveja iam-se já acumulando lascas de marisco.
Glórinha adormecera na cadeira sem ter acabado de lamber o segundo gelado.
Sem assunto, Aristides Galante e Eleutéria terminavam a manja, para sustento do peso dos feitios, feitos corpos.
Aristides Galante tentava levantar-se, mas a manobra foi dificultada pelo excessivo carregamento de peso sobre as, já meio falidas, articulações das pernas e pelos desequilíbrios adjacentes.
Eleutéria, com as mesmas privações de habilidades, proclamava que ainda havia de chegar o dia em que mandaria trocar o pé, de Aristides Galante, por um pujante pé de boi."
|
Edição e escultura: Janiel Martins
|