Graciliano Ramos, escritor Nordestino do Estado de Alagoas / Brasil (1892 - 1953).
"Vidas Secas", romance de Graciliano Ramos, puro exemplar da conceptualização
por ele definida e incrustada no seu próprio dizer:
"A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."
... para ser dita, fecundada e feita pregão, com o tesão da verdade ...
... a palavra que jorra transparências, que jorra verticalidades ...
... palavra ... a da honra, a contadora de coisas, de honestidades ...!!!
Dizem, através da própria existência, pelas palavras de ouro genuíno de Graciliano Ramos.
Vidas de honra esmurradas e amordaçadas pela força da corrupta opulência,
pela corrupta soberba e pela corrupta e cega ganância de poder ...!!!
Vidas de dor, manchas de sofrimento, ornamentadas de sangue ...
... em lições de vida ... lições de ser ... lições de gente que conhece na pele ...
... a promiscuidade das desigualdades, a desgraça dos infortúnios e os azares da nascença ...!!!
Escolher em liberdade e de igual ... Filhos da Puta ...!!!
FILHOS DA PUTA ...!!!
Quem pode escolher com barriga vazia, alma oprimida e mente enganada ...???
Vidas Secas ... com ...
Fabiano
Vitória (Sinhá Vitória)
Meninos (o mais velho e o mais novo)
Baleia (cachorra)
Homenageados e revisitados no conto "JORRA HOMEM DELE",
do psicólogo Paulo Passos (Braga / Portugal, 2015), transcrito abaixo,
pela via do aldeão pastor Fabiano, a mulher ... a aldeã Vitória, o filho (simultaneamente
o mais velho e o mais novo) e a fiel e presente em verbo, corpo e alma ... cachorra Baleia.
" JORRA HOMEM DELE
O rebanho descia pela serra em direcção ao curral,
acelerando em obediência aos chamativos, repreensões e orientações de Baleia.
Era um trabalho tão satisfatório que não se via um momento só de repouso
naquelas quatro patas, nas orelhas vigilantes e no ladrar que só cantava
gratidão. Cadela parda, pouco devedora aos atributos da estética canina, de
nome Baleia, por ter nascido com tamanho e peso muito maior que o resto da
ninhada. A completar dois anos de idade, Baleia era feliz no seu paradeiro
porque galardoada pela sorte de ter como lar, a mais acolhedora cabana de
montanha e, como família, o seu fiel amigo Fabiano (a quem chamavam dono).
Baleia era comparsa e companheira de todos os ânimos. Desconhecia o rancor.
Viviam
no júbilo das suas livres vontades e congratulavam-se, várias vezes ao dia,
pelo amparo que sustentavam um no outro. Onde estava Fabiano estava Baleia e
onde estava Baleia estava Fabiano. Nunca se impediram nem obstaculizaram. Só
eram precisos os dois.
Fabiano andava
pelos 30 anos. Viúvo desde há quase 2 anos, após o acidente que a camioneta da
excursão teve, no regresso à aldeia, já noite entrada, que lhe ceifou a mulher
e o filho, ainda por completar os três anos. Era uma das muitas excursões que
se faziam por ali, dando a conhecer outras paragens e outras gentes. Fabiano
era de sair pouco, mas não era impeditivo dos gostos da mulher. Vitória, assim
de seu nome, não perdia uma excursão. Aldeã por inteiro, Vitória era mulher
bailadeira, gaiteira, alegre e feliz com os seus pertences na vida. Vivia o
filho e o marido. Não precisava de Fabiano para dançar nas romarias. Dançava
com as outras.
Daquela
vez tinham ido ver o mar. Farnel num lado, garoto escanchado no outro lado da
cintura, lá foram, madrugada fora, para o local habitual de partida, que era sempre
na praceta pelas traseiras da Junta de Freguesia. Era ali, o único local onde a
camioneta conseguia fazer a manobra de inversão de marcha.
Fabiano
acenava, já estavam em marcha e, sorridente, voltava para casa sentindo os
prazeres de uma folga da família, por que certo que voltavam. Gostava dos seus
momentos a sós. Era ele que se entendia. De cigarro no canto da boca, mãos nos
bolsos das calças, assobio que não entoava, mas trazia-lhe o sinal da tranquila
felicidade.
A
alguns quilómetros da aldeia, no regresso da excursão e sem forma de evitar, a
camioneta despista-se derivado a óleo que estava na via. Embateu de lado contra
as árvores que ladeavam a estrada à esquerda. Era desse lado, nas primeiras
filas da camioneta, que Vitória ia sentada. Dormitava, com o pequeno a dormir
no colo. Mal se apercebeu. Foi tudo daquele lado da camioneta.
A
notícia foi recebida por Fabiano, com o silêncio e a dor que não prendia as
lágrimas. Desciam-lhe pelas faces. Tinham apenas o amparo da barba que naquele
dia não tinha feito. Ficou como apenas os silenciosos eleitos para o Nobel do Desamparo podem estar.
Chorava
Vitória, não com o lamento da viuvez, mas porque amava. Vitória sempre tinha
sido a festa de Fabiano. Chorava o filho de modo diferente. Era dele. Tinha
sido dele.
No
percurso para casa, Fabiano estipula que não pode continuar a viver na sua
casa. Nunca tinha sido a sua casa. Sempre fora a casa de Fabiano e Vitória.
Habilidoso,
curioso, com jeito para tudo, mas sobressaía o jeito de mãos. De profissão de
registo, era pastor. Em simultâneo, também era artesão.
Comodamente afastado da aldeia, mas mantendo-se na proximidade para as necessidades,
Fabiano começa a construir a casa que iria ser a sua. Era uma cabana de
madeira. Tinha projectado e desenhado na sua cabeça um piso térreo com alpendre
e uma falsa. E, certamente, o curral para a sua carneirada. A falsa seria o
quarto. Exclusivamente para ele se encontrar com Vitória. Seria um quadrado com
a escada à esquerda, de acesso ao piso térreo. Teria uma janela no tecto, sobre
a cama, para quando quisesse encontrar Vitória no brilho dalguma estrela. As
paredes eram as da casa. Colocaria apenas um gradeamento de protecção. A cama
seria baixa, aconchegadamente coberta com o que fosse de tempo. Iria encher as
paredes com os seus trabalhos de madeira esculpida. Adicionaria cores. Várias
cores, harmoniosamente seleccionadas para cada objecto. Não estava de luto. A
luz viria apenas das laterais da cama. Não queria luz vinda de cima. Essa
estava destinada só para Vitória. Ali passariam a ter os seus encontros.
No
piso térreo, muita ternura pôs Fabiano em tudo o que fez. O canto onde colocou
a lareira era de um aconchego tal, que só amando se pode conseguir. O alpendre
era um lugar de fantasia. O curral construiu-se com tanta dedicação e gosto,
como qualquer outra parte da cabana. Ficava contíguo, pelas traseiras.
Mudou-se
logo que pôde. Mudou-se de inverno. Instruiu-se, durante a sua vida, nos
requintes dos pormenores. Casa aquecida, panela de sopa de legumes no fogo de
lenha, enquanto preparava uma rasa malga de leite, destinada à cadelita que
tinha acabado de adoptar. Ainda bebé, não parava de seguir Fabiano, lançando
latidos, já de confiança, quando Fabiano a baralhava nos itinerários que fazia
na casa. Depois do leite bebido, lançava-se como podia para Fabiano e
enroscava-se nele exigindo a protecção e o carinho que lhe era de direito.
Fabiano
e Baleia construíram-se assim, sempre ligados. Era só com Baleia, que se sentia
acompanhado.
No
pastoreio, Fabiano ocupava o tempo a projectar as suas inspirações artísticas.
Baleia guardava, reunia e vigiava o rebanho. Dava, perfeitamente, conta do
recado. Só precisava da presença de Fabiano. Ainda tinha tempo para a soneca, sempre
encostada em Fabiano.
Ela era a guardiã. "
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Fonte das imagens: Janiel Martins |